Eu te
acompanho desde meados dos anos 80, quando, ainda criança, pulava na frente da
TV, e do rádio ao som de “Vida Bandida” e “Corações psicodélicos”. Essas e
outras canções constituíram o meu repertório afetivo-musical, e sempre olho
para elas com carinho. Hoje, entretanto, sua voz me soa amarga. Acho que cansei
dela. E me atrevo a falar em nome de outros fãs que estão desapontados com o
papelão que você tem feito por aí.
Você
e Cazuza foram os artistas mais provocadores da geração 80, os mais autênticos.
Cazuza foi um libertário genial, com sua ironia, homossexualidade escancarada,
e entrega total à vida. E você, com um rock maníaco-depressivo foi mesmo
uma ovelha negra dentro da MPB, como gosta de dizer. Você acrescentou à MPB
algumas doses a mais, trouxe euforia, porra-louquice, mas também
melancolia e desespero, fazendo a trilha dos anos 80, entre festas homéricas e
ressacas suicidas. E ainda colocou na canção brasileira, comportada e luminosa na
maior parte das vezes, uma violência crua. A mesma violência que já estava nos
filmes do Cinema Marginal, nos contos do Rubem Fonseca ou nas peças de Plínio
Marcos.
Depois
de debutar com um rock dançante adolescente, você enveredou por um lado
selvagem da motocicleta. Mergulhou na vida louca e bandida dos anos 80 para
contar a história do personagem que “chutou a cara do cara caído” e “bateu no
seu melhor amigo” e também a do que “sem dó, nem pena, sem um telefonema, matou
a família e foi ao cinema”. Você propôs um verão na boca do lixo, ainda que
esse universo decadente e sujo às vezes se parecesse mais com uma história de
Charles Bukowsky ou com o “Taxi Driver” de Scorcese .
Sua
história deu um livro, Lobão. Você fez de tudo um pouco, inclusive “Me chama” e
outras belas canções. Lançou discos bons, como “Nostalgia da modernidade”
(1995). Lutou uma briga boa contra as grandes gravadoras e o jabá nas rádios.
Fez também, vale lembrar, uma certa dose de músicas que me parecem muito
ruins.
Mas o
que eu acho curioso é como você é até hoje associado aos anos 80, mesmo tendo
feito tantas coisas depois. Por algum motivo, ao longo das décadas seguintes,
sua música foi saindo de cena lentamente. Aí te vimos ressurgir das estepes,
lobo escaldado a latir com raiva, primeiro como um entrevistado que premiava os
repórteres com declarações polêmicas, depois como apresentador de TV e, por
fim, colunista da Veja.
Sua
primeira aparição nacional como pugilista verbal foi na longa discussão com o
Caetano, que teve ótimos momentos, e gerou sua incrível “Para o mano Caetano”,
na qual acertou Caê à queima-roupa, brindando-o com o maravilhoso epíteto
“dandi dendê”, batendo forte, mas também o reverenciando como mestre ao mesmo
tempo. A discussão virou até matéria no Fantástico. Havia ali um diálogo
interessantíssimo entre duas vertentes nem sempre opostas da canção brasileira,
entre o tropicalismo e uma geração roqueira que o absorveu e negou ao mesmo
tempo.
Só
que parece que foi justamente isso que você perdeu, Lobão, a capacidade de dialogar,
entrando numa certa “décadence sans elégancé”. Tornou-se uma das figuras
beligerantes de “penas afiadas e garganta acelerada” tão bem descritas numa
coluna recente do Thomaz Wood Jr.
Andou
injuriando por aí gente como Chico, Tom, Gil e tantos outros. Não me entenda
mal, acho saudável questionar ícones, em arte nada deve ser sagrado. Há de
fato, muito o que se discutir na postura aristocrática e mesmo no conjunto da
obra de nossos medalhões (vide o papelão que fizeram na questão das
biografias). É verdade que nem a quase extinta bossa-nova, nem a sua filha MPB,
como fizeram crer, são capazes de representar e traduzir o país, se é que isso
um dia chegou a acontecer.
Só
que a sua virulência leviana, o seu jeito de atacar os consensos sem nada de
novo para oferecer, não me parece rebeldia, mas uma outra coisinha que às vezes
é confundida ingenuamente com iconoclastia: niilismo. Isso mesmo, uma
negatividade incapaz de criar qualquer horizonte.
É
justamente o contrário do que faz o artista. Se é o artista quem puxa o
nó da realidade e faz de tudo que vê um “link” para a criação, o difamador
maledicente usa da retórica apenas para destruir e mortificar.
Sabe,
Lobo, a gota d’água que me motivou a escrever esta carta-beliscão foi a
besteira que você falou a respeito dos Racionais MC´s, um grupo que sempre
admirei e que tem como líder aquele que é, sem dúvida, o melhor letrista a
despontar no Brasil nos últimos 25 anos. (Se você não acredita, ouça “Eu to
ouvindo alguém me chamar” ou “Capítulo 4, versículo 3”). Procure saber.
Então,
Lobão, os Racionais são mesmo, como você escreveu no último livro que lançou,
“o braço armado do PT”? Como é isso? Panteras-negras-bolivarianos? Ou uma
facção leninista do PCC? Aliás, recentemente você voltou a provocar,
chamando, em sua coluna na Veja, os Racionais, o MST e outros de “rebeldes
chapa-branca”. Tentando botar uma pimenta na sua salada envenenada
maluca, disse que Mano Brown e seus manos “sobem nos palanques, têm o
beneplácito da mídia oficial bancada pelo governo e, mesmo assim, são
revoltadíssimos com o sistema!”. Uma frase acusatória com vestes de denúncia
desprovida de qualquer dado concreto, que desemboca rasteiramente numa bobagem
malvada e infame.
Como
se os Racionais não tivessem legitimidade para falar em nome da periferia. Como
se qualquer discurso socialmente engajado fosse oportunismo. Ou os próprios
rappers fossem apenas populistas que se beneficiam de um discurso
revolucionário. Lobão, o golpe foi baixo, mas o movimento previsível demais.
Você apenas pega o que outros articulistas de direita falam sobre Lula e
encaixa grosseiramente em Mano Brown.
Você
que viveu e cantou sua vida bandida no Leblon deveria ter mais boa vontade com
o relato daqueles que vivem a vida loka nas ruas das Ruandas brasileiras. O
Haiti é aqui, Lobo.
É
curioso te ver reagir assim uma das expressões mais interessantes surgidas no
Brasil dos anos 90, década em que o rock dos 80 foi perdendo a força até virar
praticamente só a saudade da Legião e o “retorno triunfante” da Capital
Inicial. Sim, é engraçado, pois foi justamente o rap, como o Chico Buarque
notou, que fez com que a violência real do país passasse a jorrar na música
brasileira, sedimentada desde os anos 30 em torno da ideia de conciliação e
apaziguamento das tensões sociais. Se para você a MPB é “paumolescência” e o
rap oportunismo, o que sobrará? Respondo: o niilismo. Lágrimas no escuro.
Lobão,
você gritou “Lula” no Faustão, em 89, e, pelo andar da carruagem, qualquer dia
ainda vai gritar “Olavo de Carvalho!” no Circo Voador. O problema, porém, não é
a sua “conversão”. O triste é ver um músico talentoso virando apenas e
tão somente um polemista, espalhando niilismo coxinha e faturando com a
idiotização do país, a polarização burra. Lobo de patas dadas com as raposas, papagaiando
e batendo palma pra macaco. Para um ex-fã é um espetáculo triste.
Greil
Marcus, considerado por muitos o maior crítico musical americano, definiu o
ethos do rock como “uma afronta à entropia” e “um combate contra a mesmice”.
Talvez esses elementos estejam no ímpeto das suas críticas, Lobão, mas te
falta uma noção básica de hegemonia e contra-hegemonia, para saber que hoje é
você, e não o Mano Brown, quem está do lado mais poderoso, do lado daqueles que
dão as cartas mais valiosas no país e no mundo, valendo-se do controle da
economia e da mídia.
Não, Lobão, os comunistas não mandam no Brasil. Você ainda
não percebeu?
A
triste conclusão, porém, é que talvez sejam justamente besteiras infundadas
desse tipo que os seus novos admiradores querem ler. Eu não, me inclua fora
dessa. Daqui em diante, dançarei “Corações psicodélicos” nas festas (como
resistir?). E só.
Um
abraço sincero e um gancho metafórico de esquerda, do teu ex-fã,
Pedro Sprejer
Publicado
na Revista Polivox
Carta ao Lobão (de um ex-fã)
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