Poderíamos dizer que o óbvio é
óbvio e dispensa quaisquer outras considerações.
Mesmo o Darcy Ribeiro dispensaria
maiores apresentações.
Entretanto, se ainda não o conhece, Darcy
Ribeiro, o antropólogo, foi uma das “cabeças” mais
lúcidas que contribuíram para pensar esse país, embora, como ele
mesmo salienta que a pedra de toque da dominação por aqui é via
educação, ele permanece um ilustre desconhecido para a maioria da
turma hoje.
Leia o texto e dará razão aos que pensam e decidem que seja
assim: deixar no ostracismo pessoas como ele.
'É um texto indispensável para se entender um pouco sobre a
“alma imposta” ao brasileiro, feita por uma elite dominante que
se reproduz ao longo da história e que hoje esperneia na tentativa
de manter o “status quo”, que é um pressuposto básico para
manter e/ou continuar o processo de alienação e sujeição da
população, com o inestimável apoio da mídia de sempre.'
Vai constatar que é como se ele tivesse escrito esse texto ontem,
e não que ele esteja prestes a completar 40 anos, o que denota o
grande poder de dominação desses setores que estão aí, tentando
abortar as tentativas de resgatar esse país, e esse povo, das garras
seculares de uma elite astuta e poderosa, e pior, mancomunada com
interesses estrangeiros, que nunca foram tão incisivos e atuantes
como agora.
Esta foi uma palestra
sua no
Simpósio sobre Ensino Público, na 29º Reunião da SBPC, realizada
em São Paulo, em julho de 1977.
"Sobre o óbvio
“Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistas trabalham
é com o óbvio. O negócio deles – nosso negócio – é lidar com
o óbvio. Aparentemente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de
forma tão recôndita e disfarçada que se precisa desta categoria de
gente – os cientistas – para ir tirando os véus, desvendando, a
fim de revelar a obviedade do óbvio.
É óbvio, por exemplo, que todo santo dia o sol nasce, se
levanta, dá sua volta pelo céu, e se põe. Sabemos hoje muito bem
que isto não é verdade. Mas foi preciso muita astúcia e gana para
mostrar que a aurora e o crepúsculo são tretas de Deus. Não é
assim? Gerações de sábios passaram por sacrifícios, recordados
por todos, porque disseram que Deus estava nos enganando com aquele
espetáculo diário. (…)
Outra obviedade, tão óbvia quanto esta ou mais óbvia ainda, é
que os pobres vivem dos ricos. Está na cara! Sem os ricos o que é
que seria dos pobres?
Quem é que poderia fazer uma caridade? Me dá um empreguinho aí!
Seria impossível arranjar qualquer ajuda. Me dá um dinheirinho aí!
Sem rico o mundo estaria incompleto, os pobres estariam perdidos. Mas
vieram uns barbados dizendo que não, e atrapalharam tudo. Tiraram
aquela obviedade e puseram outra oposta no lugar. Aliás, uma
obviedade subversiva.
Uma terceira obviedade que vocês conhecem bem, por ser patente, é
que os negros são inferiores aos brancos. Basta olhar! Eles fazem um
esforço danado para ganhar a vida, mas não ascendem como a gente.
Sua situação é de uma inferioridade social e cultural tão
visível, tão evidente, que é óbvia. Pois não é assim dizem os
cientistas. Não é assim, não. É diferente! Os negros foram
inferiorizados. Foram e continuam sendo postos nessa posição de
inferioridade por tais e quais razões históricas. Razões que nada
têm a ver com suas capacidades e aptidões inatas, mas, sim, tendo
que ver com certos interesses muito concretos.
A Quarta obviedade, mais difícil de admitir –, e eu falei das
anteriores para vocês se acostumaram com a ideia –, a Quarta
obviedade é a obviedade doída de que nós, brasileiros, somos um
povo de Segunda classe, um povo inferior, chinfrim, vagabundo. Mas tá
na cara! Basta olhar! Somos 100 anos mais velhos que os
estadunidenses, e estamos com meio século de atraso com relação a
eles. A verdade, todos sabemos, é que a colonização da América do
Norte começou 100 anos depois da nossa, mas eles hoje estão muito
adiante. Nós, atrás, trotando na história, trotando na vida. Um
negócio horrível, não é? Durante anos, essa obviedade que foi e
continua sendo óbvia para muita gente nos amargurou. Mas não
conseguíamos fugir dela, ainda não.
A própria ciência, por longo tempo, parecia existir somente para
sustentar essa obviedade. A Antropologia, minha ciência, por
exemplo, por demasiado tempo não foi mais do que uma doutrina
racista, sobre a superioridade do homem branco, europeu e cristão, a
destinação civilizatória que pesava sobre sues ombros como um
encargo histórico e sagrado. Nem foi menos do que um continuado
esforço de erudição para comprovar e demonstrar que a mistura
racial, mestiçagem, conduzia a um produto híbrido inferior,
produzindo uma espécie de gente-mula, atrasada e incapaz de promover
o progresso. (…)
O mais grave, porém, é que além de ser um povo mestiço – e,
portanto, inferior e inapto para o progresso – nós somos também
um povo tropical. E tropical não dá! Civilização nos trópicos,
não dá! Tropical, é demais. Mas isto não é tudo. Além de
mestiços e tropicais, outra razão de nossa inferioridade evidente –
demonstrada pelo desempenho histórico medíocre dos brasileiros –,
além dessas razões, havia a de sermos católicos, de um catolicismo
barroco, não é? Um negócio atrasado, extravagante, de rezar em
latim e confessar em português.
Pois, além disso, tudo a nos puxar para trás, havia outras
forças, ainda piores, entre elas, a nossa ancestralidade portuguesa.
Estão vendo que fala de sorte? Em lugar de avós ingleses,
holandeses, gente boa, logo portugueses… Lusitanos! Está na cara
que este país não podia ir para frente, que este povo não prestava
mesmos, que esta nação estava mesmo condenada: mestiços,
tropicais, católicos e lusitanos é dose para elefante.
Bom, estas são as obviedades com que convivemos alegre ou
sofridamente por muito tempo. Nos últimos anos, porém, descobrimos
meio assombrados – descoberta que só se generalizou aí pelos anos
50, mais ou menos –, descobrimos realmente ou começamos a atuar
como quem sabe, afinal, que aquela óbvia inferioridade racial inata,
climático-telúrica, asnal-lusitana e católico-barroca do
brasileiro era como a treta diária do sol que todo dia faz de conta
que nasce e se põe. Havíamos descoberto, com mais susto do que
alegria, que à luz das novas ciências nenhuma daquelas teses se
mantinha de pé. Desde então, tornando-se impossível, a partir
delas, explicar confortavelmente todo o nosso atraso, atribuindo-o ao
povo, saímos em busca de outros fatores ou culpas que fossem as
causas do nosso fraco desempenho neste mundo.
Nesta indagação – vejam como é ruim questionar! – acabamos
por dar uma virada prodigiosa na roleta da ciência. Ela veio revelar
que aquela obviedade de sermos um povo de Segunda classe não podia
mesmo se manter, porque escondia uma outra obviedade mais óbvia
ainda. Esta nova verdade nos assustou muito, levamos tempo para
engolir a novidade. Sobretudo nós, universitários, sobretudo nós,
inteligentes.
Sobretudo nós, bonitos. Falo da descoberta de que a
causa real do atraso brasileiro, os culpados de nosso
subdesenvolvimento somos nós mesmos, ou melhor, a melhor parte de
nós mesmos: nossa classe dominante e seus comparsas. Descobrimos
também, com susto, à luz dessa nova obviedade, que realmente não
há país construído mais racionalmente por uma classe dominante do
que o nosso. Nem há sociedade que corresponda tão precisamente aos
interesses de sua classe dominante como o Brasil.
Assim é que, desde então, lamentavelmente, já não há como
negar dois fatos que ficaram ululantemente óbvios. Primeiro, que não
é nas qualidades ou defeitos do povo que está a razão do nosso
atraso, mas nas características de nossas classes dominantes, no seu
setor dirigente e, inclusive, no seu segmento intelectual. Segundo,
que nossa velha classe tem sido altamente capaz na formulação e na
execução do projeto de sociedade que melhor corresponde a seus
interesses. Só que este projeto para ser implantado e mantido
precisa de um povo faminto, xucro e feio.
Nunca se viu em outra parte ricos tão capacitados para gerar e
desfrutar riquezas, e para subjugar o povo faminto no trabalho, como
os nossos senhores empresários, doutores e comandantes. Quase sempre
cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para com
subalternos e insaciáveis na apropriação dos frutos do trabalho
alheio. Eles tramam e retramam, há séculos, a malha estreita dentro
da qual cresce, deformado, o povo brasileiro, deformado e
constringido e atrasado. (…)
A primeira evidência a ressaltar é que nossa classe dominante
conseguiu estrutura o Brasil como uma sociedade de economia
extraordinariamente próspera. Por muito tempo se pensou que éramos
e somos um país pobre, no passado e agora. Pois não é verdade.
Esta é uma falsa obviedade. Éramos e somos riquíssimos! A renda
per capita dos escravos de Pernambuco, da Bahia e de Minas Gerias –
eles duravam em média uns cinco anos no trabalho – era, então, a
mais alta do mundo. Nenhum trabalhador, naqueles séculos, na Europa
ou na Ásia, rendia em libras – que eram os dólares da época –
como um escravo trabalhando num engenho no Recife; ou lavrando ouro
em Minas Gerias; ou, depois, um escravo, ou mesmo um imigrante
italiano, trabalhando num cafezal em São Paulo. Aqueles
empreendimentos foram um sucesso formidável. Geraram além de um PIB
prodigioso, uma renda per capita admirável. Então, como agora, para
uso e gozo de nossa sábia classe dominante.
A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil, se inventou um modelo
de economia altamente próspera, mas de prosperidade pura. Quer
dizer, livre de quaisquer comprometimentos sentimentais. A verdade,
repito, é que nós, brasileiros, inventamos e fundamos um sistema
social perfeito para os que estão do lado de cima da vida. (…)
A outra façanha da velha classe foi sua extraordinária
capacidade de enfrentar e vencer todas as revoluções sociais que se
desencadearam no país. Essa eficiência repressiva lhes permitia
esmagar todos os que reclamavam o alargamento das bases da sociedade,
para que mais gente participasse do produto do trabalho e, assim,
reafirmar e consolidar sua hegemonia. Posteriormente, coroaram tal
feito com outro ainda maior, que foi o de escrever a história dessas
lutas sociais como se elas fossem motins.
Recentemente descobrimos, outra vez assustado – desta vez,
graças à perquirições de José Honório –, que o Brasil não é
tão cordial como quereria o nosso querido Sérgio. Durante o período
das revoltas sociais anteriores e seguintes à Independência,
morreram no Brasil mais de cinquenta mil pessoas, inclusive uns sete
padres enforcados. O certo é que nossos cinquenta mil mortos são
muito mais mortos do que todos que morreram nas lutas de
independência da América Espanhola, tidas como das mais cruentas da
história. Os nossos, porém, foram surrupiados da história oficial
das lutas sociais por serem vítimas de meros motins, revoltas e
levantes e, como tal, não merecem entrar na crônica historiográfica
séria da sabedoria classista. (…)
A eficácia total, entretanto, eficácia diante da qual devemos
nos declinar – aquela que é realmente o grande feito que nós,
brasileiros, podemos ostentar diante do mundo como único – é a
façanha educacional da nossa classe dominante. Esta é realmente
extraordinária! E por isto é que eu não concordo com aqueles que,
olhando a educação de outra perspectiva, falam de fracasso
brasileiro no esforço por universalizar o ensino. Eu acho que não
houve fracasso algum nesta matéria, mesmo porque o principal
requisito de sobrevivência e de hegemonia da classe dominante que
temos era precisamente manter o povo xucro. Um povo xucro, neste
mundo que generaliza tonta e alegremente a educação, é, sem
dúvida, fenomenal.
Mantido ignorante, ele não estará capacitado a eleger seus
dirigentes com riscos inadmissíveis de populismo demagógico.
Perpetua-se, em consequência, a sábia tutela que a elite educada,
ilustrada, elegante, bonita, exerce paternalmente sobre as massas
ignaras. Tutela cada vez mais necessária porque, com o progresso das
comunicações, aumentam dia a dia os riscos de nosso povo ser ver
atraído ao engodo comunista ou fascista, ou trabalhista, ou
sindical, ou outro. Assim se vê o equívoco em que recai quem trata
como fracasso do Brasil em educar seu povo o que de fato foi uma
façanha. Pedro II, por exemplo, nosso preclaro imperador, nunca se
equivocou a respeito. Nos dias em que a Argentina, o Chile e o
Uruguai generalizavam a educação primária dentro do espírito de
formar cidadãos para edificar a nação, naquelas eras, nosso sábio
Pedro criava duas únicas instituições educacionais: o Instituo de
Surdos e Mudos e o Instituto Imperial dos Cegos. (…)
O que ocorre com a universidade no Brasil é mais ou menos o que
sucederia com uma vaca se, quando bezerra, ela fosse encerrada numa
jaula pequenina. A vaca mesmo está crescendo naturalmente, mas a
jaula de ferro aí está, contendo, constringindo. Então o que
cresce é um bicho raro, estranho. Este bicho nunca visto é o
produto, é o fruto, é a flor acadêmica dessa classe dominante
sábia, preclara, admirável que temos, que nos serve e a que
servimos patrioticamente contritos.
Cremos haver demonstrado até aqui que no campo da educação é
que melhor se concretiza a sabedoria das nossas classes dominantes e
sua extraordinária astúcia na defesa de seus interesses. De fato,
uma minoria tão insignificante e tão claramente voltada contra os
interesses da maioria, só pode sobreviver e prosperar contando com
enorme sagacidade.
(Palestra no Simpósio sobre Ensino Público, na 29º Reunião da
SBPC, realizada em São Paulo, em julho de 1977).
(No livro “A paixão pela Razão – Descartes”, Mário Sérgio
Cortella, Ed. FTD, 1988, pág. 64-68).
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